(TJSP)
BDI nº 36 - ano:2008 - (Jurisprudência)
ACÓRDÃO
Compromisso de compra e venda - Cobrança de parcela do preço - Exceção do contrato não cumprido - Alegação de que os promitentes-vendedores não regularizaram a documentação, para outorga da escritura definitiva - Falta de correspectividade entre as prestações - Comportamento da promitente-compradora contrário ao princípio da boa-fé objetiva - Impugnação ao pedido de retificação de área que atrasa a regularização do imóvel e o cumprimento do contrato - Ação procedente - Recurso não provido.
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 427.288.4/1-00, da Comarca de São José do Rio Pardo - FD de São Sebastião da Grama, onde figuram como apelante Jaçatuba Administradora e Agrícola Ltda. e apelados Espólio de Fábio Ottoni Amaral e outra.
Acordam, em Quarta Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por votação unânime, negar provimento ao recurso, de conformidade com o relatório e voto do Relator, que ficam fazendo parte do acórdão.
Cuida-se de recurso de apelação interposto contra a r. sentença de fls. 390/396 dos autos, que julgou procedente ação de cobrança ajuizada pelo Espólio de Fábio Ottoni Amaral e outra contra Jaçatuba Administradora e Agrícola Ltda.
Fê-lo a r. sentença, sob o argumento de que o pagamento do preço de promessa de venda e compra de imóvel rural não estava atrelado à sua prévia regularização e outorga de escritura definitiva. Incabível a exceção do contrato não cumprido, especialmente em razão da conduta da ré, que afronta o princípio da boa-fé objetiva.
Julgou ainda a ré carecedora da reconvenção, pelas mesmas razões.
Recorre a ré Jaçatuba Administradora e Agrícola Ltda., alegando, em resumo, não terem os autores cumprido a sua obrigação de regularização da documentação e outorga da escritura de venda e compra. Invocam a figura da exceção do contrato não cumprido, para o fim de sustar o pagamento da parcela final do preço, até o cumprimento da prestação devida pelos alienantes. Reclama, ainda, do termo inicial da correção monetária e dos juros, que, a seu ver, devem ser contados somente a partir da citação.
Foi o recurso contrariado.
É o relatório.
1. O recurso não comporta provimento.
O compromisso de compra e venda é contrato preliminar bilateral, no qual se obrigam as partes a concluir mais tarde o contrato definitivo de venda e compra.
O promitente-comprador se obriga pagar o preço e o promitente-vendedor entregar a coisa. Ambos se obrigam a manifestar consentimento no contrato definitivo.
2. No caso concreto, o singelo compromisso de compra e venda teve por objeto uma gleba de terras, perfeitamente descrita e individualizada, parte certa de uma fazenda maior, cujas divisas e medidas perimetrais padecem de imprecisão.
Evidente, assim, que para outorga da escritura de venda e compra da parte destacada, indispensável a retificação da gleba maior, para que se saiba qual a figura e a área de superfície do remanescente.
Pois bem. O compromisso de venda e compra não atrela o pagamento do preço à outorga da escritura definitiva, nem à apresentação da documentação completa a tanto.
A prestação do promitente-comprador é a termo. A prestação dos promitentes-vendedores não teve data aprazada e nem sua exigibilidade se vincula ao pagamento do preço.
3. Claro que os promitentes-vendedores têm a obrigação de regularizar a gleba maior, mediante retificação do registro, para então efetuarem o desmembramento da gleba e a outorga da escritura de venda e compra.
Tais providências, demoradas por natureza, eram de pleno conhecimento da adquirente, que ainda assim e certamente integrando a economia do negócio, deixou de atrelar uma prestação à outra, imitindo-se desde logo na posse.
Como é sabido, a exceção do contrato não cumprido representa um processo lógico de assegurar, mediante cumprimento simultâneo, o equilíbrio em que assenta o esquema do contrato bilateral. Como explica José João Abrantes, em outras palavras, “significa isto que, no interior da economia contratual, a obrigação de cada um dos contraentes funciona como contrapartida ou como contrapeso da outra. A obrigação de cada um dos contraentes aparece como equivalente da assumida pelo outro” (A Excepção do Não Cumprimento do Contrato no Direito Civil Português, Ed. Almedina, Coimbra, 1986, pág. 40; também Karl Larenz, Derecho de Obligaciones, Madrid, 1953, vol. I, pág. 266).
Não é o que aparentemente ocorreu no caso concreto. A natureza da providência regularizatória do domínio demandava tempo muito superior ao pagamento e com isso acordaram as partes, sem nexo de correspectividade, entre a as obrigações de outorga da escritura e adimplemento do preço.
4. Num primeiro momento, causou-me espécie a exigibilidade integral do preço, sem a correspondente outorga da escritura definitiva, deixando o adquirente a descoberto.
Tal como pareceu ao MM. Juiz, porém, o comportamento da ré adquirente afronta o princípio da boa-fé objetiva e o dever de cooperação no adimplemento das obrigações.
Dificultou a ré o quanto pode a citação nesta ação de cobrança. Foi citada a final por edital e no curso da demanda se fez representar por seu curador especial.
Pior. Impugnou, sem qualquer razão consistente, o pedido de retificação de registro imobiliário que visa exatamente à regularização dominial, para o fim de propiciar o desmembramento e a outorga da escritura definitiva. Em termos diversos, embaraçou a tentativa dos promitentes-vendedores de cumprirem a sua prestação.
É princípio assente do direito dos contratos a boa-fé, que nada mais é do que o dever de agir de acordo com determinados padrões, socialmente recomendados, de correção, lisura, honestidade, para não frustrar a confiança legítima da outra parte (Fernando Noronha, O Direito dos Contratos e seus Princípios Fundamentais, Editora Saraiva, p. 136).
Entre as categorias de exercício de direito que infringem a boa-fé, está o venire contra factum proprio, pelo qual não é permitido agir em contradição com comportamento anterior. A conduta antecedente gera legítimas expectativas em relação à contraparte, de modo que não se admite a volta sobre os próprios passos, com quebra da lealdade e da confiança (Menezes de Cordeiro, Da Boa-Fé no Direito Civil, Almedina, Coimbra, 1997, os 742/752; Laerte Marrone de Castro Sampaio, A Boa-fé Objetiva na Relação Contratual, Coleção Cadernos de Direito Privado da Escola Paulista da Magistratura, Editora Manole, p. 78/79).
Inadmissível que promitente-compradora já imitida na posse e utilizando sem qualquer restrição o imóvel rural adquirido, após notificar os promitentes-vendedores a regularizar a documentação, impugne, sem qualquer tese consistente, a retificação de registro imobiliário. Fica a nítida impressão de que deseja protrair ao máximo o pagamento final do preço.
Na lição de Caio Mário da Silva Pereira, a exceção do contrato não cumprido, “sendo o instituto animado por um sopro de eqüidade, deve à sua invocação presidir a regra da boa-fé, não podendo erigir-se em pretexto para o descumprimento do avençado. Assim é que se ambas as prestações têm de ser realizadas sucessivamente, é claro que não cabe a invocação da exceptio por parte de quem deve em primeiro lugar, pois que a do outro ainda não é devida” (Instituições de Direito Civil, vol. III, 11ª Edição, Forense, p. 160).
Arremata o já citado José João Abrantes, “o incumprimento da contraprestação deve ser a causa única e determinante, justificação jurídica, da recusa de cumprir do excipiente”. E completa: “se o comportamento objetivamente demonstrado pelo excipiente indicia não ser esse efetivamente o motivo da sua recusa em prestar, então a exceção é ilegítima” (A Excepção do Não Cumprimento do Contrato no Direito Civil Português, Ed. Almedina, Coimbra, 1986, pág. 126).
Em resumo, a exceptio non adimpleti contractus foi bem afastada pelo MM. Juiz, especialmente à vista das circunstâncias do caso concreto.
5. No mais, a correção monetária foi corretamente contada desde o vencimento da obrigação, como mecanismo de simples manutenção do valor de troca da moeda.
A prestação de pagamento do preço é líquida, positiva e a termo. Nos exatos termos no artigo 397 do Código Civil, constitui de pleno direito em mora o devedor inadimplente, valendo o aforismo dies interpelat pro omine. Se a mora é ex re, natural que os juros de mora sejam contados a partir do vencimento da prestação.
Serão os juros de 6% ao ano até o mês de janeiro de 2003 e a contar da vigência do novo Código Civil, 1% ao mês, nos termos do artigo 406. Não se aplica a taxa SELIC, por embutir expectativa inflacionária, constituindo bis in idem com a atualização monetária.
Mantém-se, em suma, a sentença atacada, inclusive por seus próprios fundamentos.
Diante do exposto, pelo meu voto, nego provimento ao recurso.
Participaram do julgamento, os Desembargadores Ênio Zuliani (Presidente) e J. G. Jacobina Rabello (Revisor).
São Paulo, 27 de julho de 2006
Francisco Loureiro, Relator
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